Transcrever emoções, sentimentos, passado, futuro ou desejos, é viver - ou reviver - tudo o que há de melhor.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Conto de 30 minutos

Uma de suas mãos segurava uma caneta, e a outra, uma garrafa da mais barata cerveja. Sobre a mesa descansava uma agenda e um cinzeiro – e este último segurava um cigarro que queimava lentamente. Mallu arregalou os olhos. Seu cérebro enviou a mensagem para suas mãos, que, sem titubear, responderam: Uma delas levou a garrafa até sua boca de lábios finos e bem desenhados, derramando o líquido amargo, fazendo-o descer pesadamente até seu estômago. Ao mesmo tempo, sua mão esquerda movia-se rapidamente devorando cada pedaço em branco do papel.

Escrevia com afinco, derramava sua angústia no papel, e o resultado era, como na maioria das vezes, divino. A beleza é nada mais que a tristeza recomposta. Fora assim com grandes mestres da música e da literatura, e assim o era com Mallu.
Cinco minutos foram suficientes para que a folha estivesse preenchida. Mais quatro minutos e também o verso já não possuía mais espaços em branco. Era uma bela justificativa para o que viria pela frente.
A Linda garota largou a caneta em cima da mesa, derramou mais um bocado de cerveja em sua boca, varreu o bar com seus olhos verdes e repousou-os em uma faca de cabo amarelo e ponta extremamente fina. Levantou-se de sobressalto, esqueceu-se da garrafa, do cigarro – que neste momento era só filtro – e apertou o passo, indo em direção à tentadora faca.
Cantarolava mentalmente uma canção que dizia “Eu apostei tudo, e eu perdi tudo. Como pude ter sido tão estúpido?” alcançou a faca, escondeu-a na manga de sua blusa (que usava por cima de um vestido azul que por sua vez realçava a beleza de seu corpo bem feito) e saiu do bar após ter deixado o dinheiro para pagar pela bebida.
Andou muito rápido pelas ruas. Evitava as calçadas. Lugares seguros a deixavam em pânico. Estava extremamente calma. Olhava crianças sorrindo e sentia-se enjoada. Suas pernas não paravam por um segundo. Os pescoços dos transeuntes viravam sempre que cruzavam com sua figura. Ela era apaixonante. Caminhava velozmente e desviava-se das pessoas que vinham na contramão. Armada com seu cérebro, seu peito e uma faca, ela tinha destino certo.
Dez minutos depois, chegou aonde desejava. Seu peito subia e descia, em partes por ter andado muito rápido, e em partes por culpa da ansiedade. Felicidade espontânea. Lembrou-se do que passara por Fernando, um rapaz exageradamente feliz, e sem muito pensar, tirou de sua manga a faca de cabo amarelo. Só agora percebia seus adornos. Era uma linda faca, e serviria a um lindo propósito. Se Drummond fizera sucesso com um poema que não dizia mais do que “Tinha uma pedra no meio do caminho”, ela entraria para história com aquela folha.
Causaria remorso em alguns, chocaria o país, mataria ainda um punhado, abriria os olhos de tantos outros, e satisfaria sua própria vontade.
Acendeu um último cigarro. Estava parada no meio do vão do MASP. Assim que terminou o cigarro, dirigiu-se para os elevadores. Foi até um andar onde uma exposição de Maurício de Sá estava à mostra. Chegou muito perto de um de seus quadros, sua obra prima, que levava o nome de “Amor além do espírito” e, colocando o papel sobre a tela, tirou a faca e fincou-a juntando bilhete e quadro.
Pessoas aglomeraram-se para ver o quadro chorar e sangrar, enquanto liam seu recado: “Liberdade não está na arte. A arte não está na liberdade. Há mais de uma pedra no meio do caminho, há uma faca no meio do amor e do espírito”
A frase repetia-se por 43 vezes, frente e verso.